Sobre a incapacidade de entender a dor das pessoas – PARTE 02

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(…)

  • Mas você conseguiu voltar pra faculdade?
  • Consegui nada. Todo mundo queria adotar meus filhos caso eu resolvesse não querer, mas agora ninguém me ajuda com nada. Saio às 18h do trabalho, passo pegar eles na creche, chego em casa por volta de 19h e vou dormir geralmente às 01:00 da manhã. Meu marido chega às 18:30, toma banho, janta e vai dormir. Nunca vê que eu sequer tiro o meu uniforme quando chego em casa. Tenho que levantar às 06:00 pra arrumar as crianças e levar na creche, e entrar às 08h no trabalho. Se eu mal tenho tempo de comer, tomar banho e dormir, quem dirá de estudar. Enquanto isso meu marido se forma no meio desse ano, mal sabe qual o dia do aniversário das crianças e não sabe nem se tem ou deixa de ter comida em casa. Só larga o dinheiro na minha mão no começo do mês e seja o que Deus quiser.
  • Você sabe que não precisava ser assim, né?
  • Eu sei. Hoje eu tenho raiva do meu marido. Raiva de tudo. Raiva por ter me engravidado, raiva por não ter deixado eu abortar, raiva por estar dentro da mesma casa que eu e fazer de conta que nem eu, nem as crianças existimos, raiva por ele ter seguido a vida dele normalmente, estar se formando, enquanto eu tô presa num inferno há praticamente 4 anos. Não consigo nem olhar na cara dele mais. Não suporto o cheiro do perfume dele, me dá ânsia de vômito. Não me ache horrível, monstra ou desumana, mas eu não consigo sentir mais amor por nada nem por ninguém.
  • Já disse que não vou achar nada de você. Não sou nada nem ninguém pra te julgar 🙂
  • Já perdi as contas de quantas vezes eu saí pra rua de madrugada chorando. Já cansei de dormir sentada em meio fio, já fui assaltada 2 vezes por isso, porque qualquer coisa é melhor do que ficar dentro da minha casa. Eu vejo as pessoas no meu trabalho ansiosas pra chegar às 18h e ir embora, enquanto eu começo a entrar em pânico e quero que o tempo passe devagar. Não quero ir pra casa. Quero morrer.
  • Você não vai morrer. Não precisa. Você precisa de ajuda, em todos os sentidos. Você já procurou ajuda psicológica?
  • Já. Uma vez eu pirei no trabalho, e me mandaram numa psicóloga. Eu não falei nem 1% pra ela do que eu te falei aqui, e ela disse que eu não podia ser assim e que eu era uma pessoa horrível por odiar ser mãe. Segundo ela, nenhuma mulher consegue odiar ser mãe, porque ter filhos é a melhor coisa que acontece na vida de uma mulher e eu era uma ingrata com a vida.
  • PUTA QUE ME PARIU! Desculpa, não queria reagir assim, mas né? Que pessoa é essa?
  • Pois é. Desde então eu concluí que ninguém podia me ajudar e que eu tô condenada pro resto da vida. Quero me divorciar e meu marido diz que não dá, que não pode, que casamento é até o último dia da vida e que eu preciso entender isso. Estou condenada ao casamento e à maternidade e me sinto sufocada 24 horas por dia.
  • Sobre o divórcio, existe um jeito de você solicitar mesmo contra a vontade dele. Ninguém mais é obrigado a ficar em um relacionamento abusivo e infeliz desse jeito. Se chama divórcio litigioso, você pode se informar melhor sobre isso. Sobre os seus sentimentos, procure alguém pra te ouvir e te ajudar de alguma forma. Não dá pra viver escrava desse jeito eternamente. Pra tudo tem solução na vida. Só pra morte que não.
  • Você foi a primeira pessoa que fez algo que realmente me ajudou. Ninguém nunca me ouve sem mandar um “que coisa horrível, onde já se viu odiar ser mãe, crianças são anjos de Deus”, e na verdade eu acho que Deus é um puta sacana deixando que eu viva esse inferno de vida. E eu nem sabia desse negócio de pedir divórcio sem precisar do outro, vou ver isso amanhã mesmo. Eu vou acabar matando meu marido e meus filhos. Ele por não ter o mínimo de consideração comigo, e meus filhos porque eu não quero morrer e deixar eles aqui sofrendo sem ninguém, afinal de contas se não sou eu aqui eles morrem de fome, de sujeira e de tudo
  • Ninguém vai matar ninguém. Vamos ver um jeito de te ajudar. Vou deixar meu telefone com você e vamos ver o que podemos fazer ao longo dos dias. Eu conheço muita gente, desde psicólogos, advogados, médicos, enfim… E são pessoas que terão o prazer de te ajudar também.
  • Ainda bem que foi você quem veio hoje. Toda vez que eu surto, meu marido só faz chamar o SAMU e espera que me deem um sossega leão pra eu dormir e deixar ele dormir em paz também. Alias, segundo ele, é tudo o que ele quer na vida: paz e tranquilidade. Enquanto isso, eu fico aqui vivendo o inferno por mim e por ele.
  • Vamos dar um jeito nisso, ok? Se você quiser dormir aqui na UPA, posso falar com a enfermeira e te deixar quietinha numa das salas vazias. O ruim é que você vai ter que dormir numa maca, mas pelo menos vai dormir em paz.
  • Eu dormiria até no chão, desde que eu não precisasse ouvir choro de criança e pessoinhas berrando “mãe, mãe, mãe!”. Credo, eu sou um monstro, olha o que eu tô falando!
  • Você não é um monstro. Você é humana. E uma humana que se arrependeu de algo, coisa que é todo de seu direito. Fique aqui, vá pra casa de manhã e a partir de agora nós vamos ver o que podemos fazer pra te ajudar e pra você voltar a ser feliz, ok?

Nesse momento eu recebi o abraço mais apertado e mais demorado do mundo. Parecia que ela queria dividir aquele peso com o meu corpo. Parecia que eu conseguia sentir a agonia dela, mas eu não sentia era coisa nenhuma. A agonia dela com toda certeza era 100 vezes maior do que a que eu estava sentindo. E por fim, ela disse:

  • Moça, se você não quer ter filhos, não tenha. Se engravidar por acidente, aborte. Não ceda à pressão de homem e família. Só você vai arcar com as consequências disso. Absolutamente sozinha! Muitas mães realmente nasceram pra isso, amam a ideia e tem mais é que ter filhos mesmo. Mas pra quem não quer e acontece, é a sensação de ter dentro do próprio corpo o fracasso da vida crescendo a cada dia. Não faça isso com você. O sexo vira uma bosta, o corpo vira uma gelatina, o humor se torna péssimo, a vida pessoal vira pó e você nunca mais se vê em um momento particular e só seu. De repente você se resume a limpar bunda suja, a cozinhar e não poder comer, a ter cabelos e aparência largadas e esquecer tudo o que você era antes. É o fim da vida.

Infelizmente, quando uma mulher decide por ser childfree, ou quando abre o jogo que se arrependeu da maternidade, ela é massacrada até se achar o ser humano mais podre e seco do mundo. Eu me incluo nessa. Só Deus sabe o que eu passo nessa vida com essas pessoas. O pior é macho vindo dizer que “quando eu virar mulher de verdade, me casar e tiver sucesso profissional, eu vou sentir a necessidade de ser o que eu nasci pra ser”. Que “por enquanto estou deslumbrada com a vida acadêmica e isso vai passar quando minha cabeça for adulta”. Meu cu.

P.S.: Ela me ligou no dia 05/02 e eu coloquei ela em contato com algumas pessoas. Pedi que ela me atualize sempre que puder, e que não passe por nada sozinha a partir de agora.

P.S.2: Depois disso, entrei na internet e pesquisei no Google o termo “Odeio ser mãe”. Ele só perde em quantidade de buscas para “odeio ser gorda”, “odeio ser pobre” e “odeio ser mulher”. E encontrei um blog onde as mulheres estão mandando ver no desabafo. É esse aqui.

Sobre a incapacidade de entender a dor das pessoas – PARTE 01

(A postagem desse acontecimento foi autorizado pela moça.)

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Em um desses dias de trabalho, recebemos um chamado de ocorrência às 22:33 e era um surto psicótico, mulher, 25 anos. De pronto, a enfermeira que estava na minha equipe naquele dia revirou os olhos e disse “mais uma surtada pra encher de diazepam, de certo brigou com macho e tá louca”. O machismo e a falta de empatia dela frente à situação é assunto pra outro post. Porém não posso deixar de dizer que fiquei com vontade de deixar ela sem uns dentes.

Chegando ao local, desci e encontrei um homem e duas crianças em frente ao portão. Perguntei o nome dele, qual o grau de parentesco com a paciente, e identifiquei que era o marido. Não estava nada assustado ou preocupado, todo tempo agiu como se não visse a hora que resolvêssemos o problema e fôssemos embora pra ele poder dormir. As crianças, ao contrário do pai, estavam extremamente assustadas e chorosas.

Pedi à enfermeira para que conversasse com o marido e pedi autorização pra entrar na casa. Logo na entrada, dava pra ver um cenário de passagem de um furacão. Móveis revirados, objetos quebrados e uma casa vazia. Chamei a paciente pelo nome, mas ela não respondia. Passei a procurá-la, e a encontrei no banheiro sentada no box debaixo do chuveiro ligado. Ela sangrava pelas mãos e punhos, tinha um corte significativo na cabeça e hematomas pelas pernas. De início, pensei que ela tinha sido agredida e aquele meu sentimento de justiceira logo surgiu, mas ela disse que tinha feito tudo aquilo e que o marido não tinha feito nada e estava dormindo enquanto ela surtou.

Ela chorava de um jeito que eu felizmente sei explicar e compreender. Eu choro igual quando quero falar algo que está me incomodando e me machucando, mas não consigo ou não tenho pra quem falar.

Consegui convencer ela a ir até a ambulância para que eu pudesse verificar os ferimentos e ver o que eu poderia fazer por ela. Disse que os filhos dela estavam lá fora muito assustados e que ela precisava de curativos. Quando disse a palavra “filhos”, essa mulher caiu de joelhos no chão da sala e chorou descontroladamente. Me ajoelhei junto e abracei ela com toda a força que tive. Nitidamente eu estava em frente a uma pessoa em sofrimento psicológico intenso.

Quando entrei com ela na ambulância, fechei as portas e pedi para o condutor e a enfermeira me deixar a sós com ela. Ela parou de chorar na mesma hora. Fiz os procedimentos básicos, verifiquei os ferimentos e comecei a fazer os curativos. Disse a ela que iria levá-la à UPA e que lá ela seria medicada e acompanhada. Ela não falou nada. Quando terminei, perguntei a ela se tinha algo que ela gostaria de falar:

  • Moça, tem algo que você queira colocar pra fora e que está te incomodando? Pode falar, eu não vou te julgar nem dar palpite, se você quiser falar eu prometo que só vou ouvir e não vou contar pra ninguém.
  • Tem sim, mas não posso falar. É horrível e eu sou horrível. Eu mereço morrer.
  • Você não é horrível. Você é uma pessoa com sentimentos. E seja lá o que for tão horrível assim, eu aguento ouvir. Já ouvi, vi e vivi bastante coisa horrível nessa vida.
  • Tá. Mas então me leve pra UPA. Eu sei que vocês não podem ficar tanto tempo atendendo alguém na casa, toda semana vocês vem aqui e eu acho que já incomodei bastante.

E lá fomos nós pra UPA.

Chegando lá, ela foi medicada e ficou sob observação. Notifiquei como crise de ansiedade. Quando foi liberada, começamos a conversar.

  • Por favor, é a primeira vez que eu vou falar sobre isso. Não me condene. Eu tentei suicídio hoje, pela 11ª vez. Eu não aguento mais a minha vida. E hoje, além de tirar a minha própria vida, também ia tirar a vida dos meus filhos.
  • Mas por que? Fica tranquila, não vou te julgar. 
  • Moça, eu odeio ser mãe. Odeio do fundo da minha alma. Eu não nasci pra isso. Não me entenda mal, eu amo os meus filhos, não é culpa deles, mas eu não nasci pra ser mãe. Não tenho paciência, minha vida mudou completamente, e mudou pra pior.
  • Certo. Eu sei que você ama seus filhos. Não duvido nem um pouco disso. E acredite, eu te entendo perfeitamente.
  • Você é mãe?
  • Não. E não quero ser. Também não nasci pra ser mãe. Por isso te compreendo. Eu também odiaria ser mãe.
  • Eu até pensava em ter filhos e tudo mais. Mas antes eu queria fazer faculdade, comprar uma casa, ter como sustentar uma casa e dar uma vida boa para eles. Só que agora eu vejo que eu não gostaria de ter filhos nem numa situação melhor de vida. 
  • Mas o que aconteceu? Vocês planejaram ter filhos?
  • Não. Eu sempre quis fazer Engenharia Química. Trabalho em uma indústria de cosméticos aqui em Curitiba e acabei me apaixonando. Meu sonho era estudar na UFPR, fiz 1 ano de cursinho, não passei na 1ª fase por 2 questões. Tentei no ano seguinte e passei em 4º lugar. Me senti a melhor pessoa do mundo. Na faculdade, conheci o meu marido. Foi em um dos churrascos da Medicina. Começamos a namorar, e quando eu estava no começo do 5º período, engravidei. O anticoncepcional perdeu o efeito porque tive uma infecção fúngica e o medicamento cortou o efeito. Ninguém me falou isso e deu no que deu. Engravidei de gêmeos.
  • Que foda. E o seu namorado?
  • Então… Eu queria abortar. Mas ele é católico fervoroso, disse que era pra eu ter os filhos e dar pra ele criar, e que eu poderia ir embora depois. Tentei abortar com chás, com overdose de medicamentos, e chegou um tempo em que ao invés de abortar eu tentava me suicidar. Nada deu certo.
  • Meu Deus! E a sua família?
  • Mesma coisa do meu namorado. São católicos e dão aula na catequese, jamais aceitariam que eu abortasse. Minha mãe até entendia o quanto eu estava sofrendo com aquilo, mas dizia que quando eu visse o rostinho dos meus filhos eu esqueceria tudo e iria sentir o maior amor do mundo. O problema é que meus filhos têm 3 anos e até hoje eu não me encantei com nenhum rostinho e nenhum sorriso. Eu os amo, mas minha vida seria muito melhor sem eles.

(continua)

 

Recomeço

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Já tentei iniciar blogs sobre inúmeros temas durante a minha vida. Prometo que esse será o último. Com essa coisa massa de ter aplicativo no celular e poder postar as coisas de onde eu estiver, não tem mais desculpa pra deixar isso aqui abandonado.

Tenho apenas uma ressalva a fazer: esse blog é “anônimo”, e deixarei que as pessoas que desfrutarem dele também sejam anônimas. Quero poder fazer desabafos e falar de coisas que geralmente não podemos falar abertamente. Quero problematizar, questionar, informar, esclarecer e ser um porto seguro no meio dessa selva de pedra que temos que viver diariamente. Os comentários anônimos serão liberados, mas só serão aprovados se não tiverem conteúdo de ódio ou ofensa a alguém.

A primeira postagem será sobre um fato que me ocorreu anteontem. Isso mexeu comigo a ponto de me virar aos avessos, e eu pude perceber como isso é mais profundo do que eu imagino.

A título de esclarecimento, quero dizer quem sou (ou pelo menos me considero ser): sou uma neurofarmacologista em treinamento, sou de esquerda, marxista contemporânea, feminista e ferrenha defensora da liberdade das pessoas. Sou socorrista do SAMU, sou protagonista do pior dia da vida de muitas pessoas, mas todos os dias aprendo algo diferente nessas situações e adoro a sensação de saber que alguém está respirando melhor porque fiz meu trabalho bem feito e com amor. Sou umbandista, filha de Oxum, apaixonada por espiritualidade e buscando evoluir como humana e como espírito. É justamente por isso que problematizo (quase) tudo. Evolução não se conquista parado. Evoluir significa mudar, crescer, abrir mão, aprender com os erros e aprimorar os acertos. Não tenho problema algum em reconhecer quando erro, porém quando sei do que estou falando, discuto até o fim.

Com o passar do tempo as coisas vão se esclarecendo. Sejam bem vindos para ficar e livres para partir, só não encham meu saco.